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O Triste Abandono do "Melhor Amigo do Homem" René Ariel Dotti
Foi Mark Twain (1835-1910), o grande romancista norte-americano quem cunhou um pensamento genial: "Se você recolher um cachorro que morre de fome e o tornar próspero, ele não o morderá. Aí está a diferença entre um cão e um homem."
Esse reconhecimento da gratidão e da fidelidade que ligam o animal ao seu dono é uma das inúmeras referências que a arte e a literatura dedicam à relaçao entre os cães e as pessoas. Foi pensando desse modo que li, com tristeza, a reportagem da Gazeta do Povo de domingo último: "População abandona animais de estimação". A matéria contém informações, observações e conselhos no texto-pesquisa da jornalista Andréa Morais e na entrevista da sra. Maria Elizabeth Ferraz, diretora do setor de Controle de Zoonoses, isto é, de doenças que podem ser transmitidas dos animais para os homena e vice-versa.
Os leitores ficaram sabendo que quase 40% dos cães recolhidos pela carrocinha em Curitiba são de estimação e foam rejeitados pelos seus donos, que autorizam o seu sacrifício. Segundo a diretora Ferraz, dos 23.740 cachorros removidos no ano passado, 8560 estavam na residência dos proprietários. "As solicitações são feitas geralmente quando os animais ficam doentes. Cerca de 90% não recebem atendimento médico e vários chegam em condição lamentável, em função dos maus-tratos." A falta de alimentação e tratamento são as causas determinantes de um quadro profundamente chocante para quem, como a dedicada servidora municipal, também sofre com a falta de responsabilidade de um grande número de pessoas que não exercem a posse responsável do animal. Também a presidente da Sociedade Protetora dos Animais, a Drª Enid Bernardi, registra a sua lamentação ao comentar que muitos cães e gatos são adquiridos ainda filhotes. "Os pais vão às feiras com os filhos que choram para levar os animais para casa. Pouco tempo depois, quando o bichinho começa a fazer suas necessidades no tapete é abandonado na Sociedade Protetora ou jogado na rua." Daí vem um dramático apelo: a entidade não tem mais condições de receber tantos animais. "Podemos fechar a qualquer momento, temos mais de mil animais. O espaço é insuficiente e os gastos muito altos. Somente com aluguel e o IPTU, gastamos R$ 1.553,00 mensais. Além disso, há os custos de veterinário e alimentação (por dia, os animais da Protetora consomem cerca de 180 quilos de ração)". (Gazeta do Povo, 12-5)
Nesta coluna publiquei a crônica "O pedido de asilo ao prefeito", cujas primeiras frases eram estas: "A Sociedade Protetora dos Animais está pedindo socorro. Existem muitos animais carentes nas ruas de Curitiba que sofrem a ameaça de extermínio após a captura pelas malsinadas carrocinhas, terror de nossa infância, tristeza do nosso presente e contradição da cidade ecológica". Certamente o pedido não foi considerado, apesar do empenho do vereador Ney Leprevost e do requerimento com 8.000 assinaturas pedindo a doação de um local com capacidade para 5.000 hóspedes.
O assunto sugere o tema da proteção dos animais e lembra um clássico da literatura portuguesa: Bichos, de Miguel Torga. Ele não queria que nos seus bichos (Nero, o cão, Bambo, o sapo; Tenório, o galo ou Mago, o gato) o leitor visse somente animais, mas também os seres hmanos que eles simbolizam. Esse propósito do escritor se revela no pequeno-grande prefácio da obra quando recebe o leitor "no portaló da minha pequena Arca de Noé (...)". A lembrança do patriarca bíblico é a maior demonstração de que os homens precisam dos animais para sobreviver.
Existem, portanto, notáveis exemplos para dissipar a tristeza da reportagem. Lembro dois deles. Coincidentemente de jornalistas: Carlos Heitor Cony e Cândido Gomes Chagas, que se tornaram grandes amigos de pequenos cães. Cony imortalizou a sua Mila em crônicas plenas de ternura e o Candinho, como gesto de despedida, estampou o retrato de Fancy na capa de sua revista Paraná em Páginas.
René Ariel Dotti, advogado e professor universitário, foi secretário de estado da Cultura do Paraná.
Publicado no jornal Gazeta do Povo em 16/05/2002
