Cachorro, Espelho do Homem
Fred C. Kelly

(trecho)
 

... O meu Badger tem de há muito um absurdo costume, que nunca pude explicar se não como uma atitude de represália do velho patife. Se saio e o deixo só em casa, é certo que vai de quarto em quarto, trepa nas camas e as desmancha todas. Em caso algum salta para as camas se há alguém em casa; mas, logo que se vê só, parece não perder tempo em realizar o seu secreto intento. Não o faz pelo desejo de se deitar na cama, pois nunca nela permanece mais tempo do que o necessário para deixá-la em completa desordem. Nem faz isso, certamente, para procurar-me, como se julgasse ainda no leito, uma vez que nota sempre a minha saida pela porta da rua. Será que o faz por vingança, pelo fato de o haverem deixado sozinho? Cada vez que pratica a travessura, compreende que está fazendo mal e que mais tarde ralharei com ele. Sua determinação, porem, é tão grande que ele não pode deixar de desarrumar as camas, ainda mesmo que tenha de passar o resto do dia com um peso na "consciência". Em geral, quando regresso depois de breve ausência, Badger vem pulando até a porta para saudar-me, prazenteiramente. Se deixa de o fazer, já sei que ficou sozinho em casa e está envergonhado da reinação que praticou. Chamo-o e, com grande relutância, ele finalmente vem, de cauda arriada, com ar abatidíssimo.

Tem sido impossível corrigí-lo do mau costume de desmanchar as camas. Nunca fora possível apanhá-lo em flagrante até que, por fim, tive essa oportunidade. Eu me encontrava numa pequena cabana, nas florestas do Maine, acompanhado de Badger. Para fazer as minhas refeições, ia até outra cabana próxima, deixando-o sozinho. Quase invariavelmente, quando eu voltava, a cama estava em desordem. Um dia saí e voltei logo, pé ante pé, indo colocar-me num ponto de onde pudesse espiar pela janela. O cachorro saltou imediatamente para a cama e começou a desmanchá-la. Olhando casualmente em direção à janela, deu comigo. Sem esperar por uma palavra, toda a sua aparência mudou, e foi com um ar muito envergonhado que, lentamente, se foi esgueirando. Logo depois, como sempre o fazia em tais circunstâncias, fitou-me humildemente, procurando no meu rosto um sinal de perdão. E ao me ver nos lábios o primeiro indício de um sorriso, saltou para mim como uma criança feliz, mostrando, como de costume, a sua alegria em penitenciar-se.

Os cachorros, como os homens, não gostam de admitir que estão ficando velhos ou que, por qualquer outro motivo, já não podem fazer tudo que antes faziam. Badger já passou dos 15 anos, e agora prefere permanecer dormindo a maior parte do tempo. Se me vê, porem, brincando com um cachorro mais novo, é certo que começa logo, num rompante, a exibir a sua agilidade, para me fazer crer que é ainda esperto.


Publicado na revista Seleções do Reader's Digest em maio de 1943; originalmente em inglês na Century Magazine.

 

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