Preso Por Ter Cão*
Jack Alan (Jack Goodman & Alan Green)



O amigo, que tem cachorro, precisa me ouvir. Em primeiro lugar, é inútil disfarçar: o seu cachorro sabe perfeitamente que, afinal, êle é que é o dono — êle é que manda. Não adianta estar consultando livros ou veterinários especializados, mesmo que êles se mostrem sapientes e falem em educação e psicologia canina com ares de entendidos; no fim, você acaba na mesma situação, tendo que resolver sozinho o seu problema. Eu não sou autoridade no assunto, mas quero mostrar aos meus leitores como é que a gente consegue dar ao cachorro a noção exata dos seus direitos e deveres.

Creio poder dizer que o meu caso pessoal contém uma lição bem preciosa. A princípio, logo que eu comprei o cão, as cousas andaram mal. Antes de mais nada: eu não o escolhí, — foi êle que me escolheu a mim. Eu queria comprar vários filhotes, mas minha senhora, Phyllis, protestou, dizendo que o nosso apartamento era pequeno demais; visto isso, decidi adquirir ao menos um bicho bem grande, para justificar a despesa, e resolví que seria um dinamarquês, daqueles enormes. Estava examinando cuidadosamente alguns filhotes, quando um dêles deu um pulo, aterrissou sentado nos meus pés, e se pôs a olhar para mim com um ar crítico. Não me podendo mexer sem machucá-lo, tive que retribuir a atenção que o bichinho me dispensava. Era evidente que eu estava sendo admirado. Daí a pouco, agarrou com os dentes o pano das minhas calças, e o sacudiu com entusiasmo, talvez para ver se a fazenda era de boa qualidade. Terminada essa operação, meneou-se todo violentamente, exprimindo seu contentamento, e subiu pelo meu corpo até as mãos, umas das quais lavou muito bem, com a sua língua côr de camarão.

Sentou-se então, de novo, nos meus pés, e fui outra vez objeto de sua admiração.

Eu acabara de ser escolhido.

Passaram-se vários meses. Agora êle já pesa uns 40 quilos, mas está crente que ainda é filhote, e por isso vive trepando na minha cadeira, quer eu esteja lá quer não. Sua bôca é tão grande que meu braço cabe dentro dela; e isso êle faz questão de comprovar tôda vez que lhe dou banho. Tem uma voz que, embora um pouco úmida, é indiscutivelmente de barítono.

Parece-me que falta qualquer cousa aos meus métodos educativos. Percebí, depois de algum tempo, que meu primeiro passo tinha que consistir em ganhar sua confiança. Para o conseguir, eu me sento no chão perto dêle e digo: "Cachorrinho camarada!" Isso é mentira, e êle sabe, porque está perfeitamente ciente de que nem é "cachorrinho", nem camarada. Diante dêsse meu gesto, êle dá vários passos atrás e mergulha seus olhos nos meus, com a expressão de quem dissesse: "É... você está querendo me tapear, mas eu não caio nos seus truques!"

Eu então estendo a mão num gesto de amizade, e lhe acaricio a pata que esteja mais próxima; êle a retira, e começa a lambê-la, como se a quisesse desinfetar. Desafôro!

Tento despertar sua atenção, fechando as mãos e dizendo com cara de inocência: "Adivinhe o que é que eu tenho aquí!"

Mostrando certo interêsse, êle vem me farejar, e me pega em flagrante com as mãos inteiramente vazias...

Quando o comprei, dei-lhe o nome de Gilberto, mas, como êle só atende à palavra comida, passei a chamá-lo assim. E desde a primeira vez que vi Gilberto, ou melhor, Comida, nunca mais pude me alimentar bem às refeições, pela maneira como êle se porta: assim que começo a comer, o bicho fica parado com uma cara trágica, olhando para mim. Com dó dêle e remorso pela minha gula, vou, assim mesmo, levando à bôca a primeira garfada. Mas Gilberto continua olhando, e faz um ruído dramático na garganta; sou obrigado a dar a êle a minha garfada, embora muito a contra gôsto.

Às vezes, resolvo brincar com Gilberto. Agachado no chão, avanço para cima dêle, latindo repetida vezes. Êle brinca comigo, fingindo pensar que eu sou cachorro. Com um ganido alegre, derrapa atrás duma cadeira, e pula nas minhas costas. Resultado: fico achatado no chão, com o bicho em cima. Êle quer, então, fingir que está sacudindo minha cabeça, mas o fingimento é muito mais difícil que a realidade, e por isso passo a ser sacudido de fato. Eu me levanto e escovo a roupa: para mim, a brincadeira está acabada. Mas Gilberto quer mais. Segura minha gravata com os dentes e dependura-se nela; quase perco o fôlego.

Vendo que a cousa está longe do fim, resolvo castigá-lo, trancando-o no banheiro. Isso é uma operação complicadíssima, que segue um rito especial, a saber:
 

  1. Percebendo a minha intenção, êle precipita-se para o meu quarto e esconde-se debaixo da cama.
  2. Eu corro atrás, e digo, com energia: "Saia daí já!"
  3. Êle não sai.
  4. Deito no chão e olho para debaixo da cama. Encaramo-nos um ao outro durante um minuto, como se estivéssmeos brincando de ver quem é que piscava primeiro. Eu pisco, e perco o jôgo.
  5. Faço ameaças terríveis. Êle responde com outras.
  6. Apresento-lhe meu lenço perto do focinho, esperando que êle o agarre, e que eu possa, assim, puxá-lo para fora.
  7. Êle agarra o lenço e puxa.
  8. Ficamos os dois debaixo da cama.
  9. Seguro-o com fôrça.
  10. Uma cabeça bate ruidosamente na cama; não é a dêle.
  11. Aos puxões e empurrões, consigo afinal deixá-lo no banheiro.
  12. Paro de fechar a porta para evitar acertar o focinho dêle.
  13. Fechando a porta apressadamente, quasi esmago minha mão.
  14. Eu e êle uivamos ao mesmo tempo.


Ligo o rádio com o máximo do volume de som, e entro na cozinha cantando bem alto, para ver se o distraio.

Pois apesar de todo êsse barulho, Gilberto, que continuaria dormindo pacificamente se houvesse um terremoto, ouve agora o ruído da geladeira que eu abro: e no momento que tiro do refrigerador um pedaço de osso de boi, o animal começa a soltar berros lancinantes, dando à vizinhança tôda a impressão de que o estou assassinando.

Cinco, sete vezes por dia tenho que levá-lo a passear. O animal dá pulos de contentamento quando lhe coloco a corrente na coleira e, aos saltos, vai me puxando até o elevador.

Às vezes, quando Gilberto está de sorte, temos um companheiro no elevador: um senhor gordo, baixo, de cara veremelha, que mora no andar de cima, e por quem Gilberto sente um afeto extraordinário. Demonstra logo, aliás, essa amizade, colocando as patas dianteiras nos ombros irrepreensivelmente elegantes do nosso vizinho, e passando a língua úmida da testa ao queixo do pobre homem, cujo terno impecável fica, ao mesmo tempo coberto de pelos.

O rosto vermelho enrubesce ainda mais. Aquele é um dos tais que destestam cachorro. Bem que eu sei disso, pois da primeira vez que Gilberto fez essa demonstração efusiva de amizade, eu expliquei:

— Não tenha mêdo, êle é manso.
— É, mas eu é que não sou!

Na rua, Gilberto e eu passamos grande parte do tempo parando perto de árvores e postes, enquanto um de nós fica lendo o jornal. Muiitas vezes fico com vergonha e faço de conta que não conheço Gilberto, mas é difícil disfarçar, por causa da corrente que nos une.

Já aprendí a distinguir os estados de espírito de Gilberto, e como isso tem sido de grande utilidade para mim, desejo citar dois casos, seguidos de conselhos nascidos da experiência, para os leitores que tencionarem comprar um cachorro.

1. Animaçcão incoercível. É um estado de alma que se manifesta duas vezes por dia: às 6 da manha Gilberto instala-se comodamente sôbre o meu estômago, fazendo-me perer o sono e o fôlego ao mesmo tempo; e depois, lá pela meia-noite, assim que eu o coloco confortavelmente na cama, êle começa a insistir que eu lhe dê o osso de borracha para brincar, ou o leve à rua; em geral vou mesmo, de pijama, com um casaco por cima.

2. Atitude de incoerência diante do delito. Quando eu chego no quarto e vejo a colcha tôda despedaçada, Gilberto começa a querer disfarçar o que fez, mostrando uma alegria enorme com a minha chegada, sem saber, coitado, que um pedaço da colcha ficou preso na sua coleira... Há um jeito de evita isso: é deixar a cama nua, vazia, e só trazer lençois e colchas na hora de dormir.

As pessoas mais experimentadas e sensatas não hão-de estranhar que eu, mesmo com tanta complicação, ainda queira ter cachorro em casa; mas se houver gente curiosa que me faça essa pergunta, a resposta é muito simples: em Gilberto eu encontrei um ser inferior a mim em muitos sentidos. Êle não é capaz de guiar automóvel; eu sou. É incapaz de lavar pratos, sair à rua para fazer compras, e muitas outras cousas que Phyllis, minha senhora, considera necessárias. Em resumo, Gilberto é o argumento vivo, esmagador, contra a teoria de minha mulher, de que eu sou o ser vivo mais incompetente que Deus já creou.

Além disso, êle é o cachorro melhor e mais bonito da cidade, por mais depredações que faça lá em casa.


Publicado em português na revista Seleções do Reader's Digest em junho de 1942; o título se refere à frase "Preso por ter cão, preso por não ter cão!", de Machado de Assis (O Alienista, texto completo aqui), que acabou virando ditado popular. How to Raise a Dog (Como Educar um Cão, título original) é um capítulo do livro How to do Practically Anything. Publicado em inglês no livro The Greatest Dog Stories Ever Told.

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