Tiau, Topinho
Dalton Trevisan

Ao abrir a porta, de manhã, ali quietinho na cama: o velho Topi se finou dormindo. Tudo o que direi, a quem me perguntar.

Ah, morrer não é tão fácil. Duas da tarde, entro na sala, ele dá voltas, tonto, arrasta a perna traseira direita. "Meu Deus, carinha, o que foi?" Ainda há pouco, dividimos lasca de queijo branco: "Só um  pedacinho, hein? Não se acostume." Todo se lambeu, deliciado.

Agora não pára, aflito, sempre a mesma volta à esquerda. Falo com ele, afago a cabecinha em fogo. Abro-lhe a porta, cambaleia na área, decerto em pânico, não sabe o que lhe está acontecendo. Cheira sob o portão, se arrasta sem rumo, ajudo-o a subir o degrau.

Mais giros, bate-se na perna das cadeiras. Cego de um olho, será? Pronto, sacudido inteiro de convulsões. Sinto no rosto o vento da marreta invisível que lhe acerta a nuca. Cai de lado, estala os dentes, língua de fora, espumando. Me ajoelho, aliso a grande orelha, falo com ele. Surdinho há meses, não me ouve, falo assim mesmo: "Coragem, amiguinho. Sou eu, segurando a tua patinha."

Decerto é o fim. Não, a morte nunca tem pressa. O derrame lhe afetou as cordas vocais, sei lá. Com tanta dor, agonia sem nenhum ai. Revira o branco do olho, a espuma se espalha no tapete. Só as unhas de leve arranham o soalho. Valente, não se entrega, o carinha: contra os golpes da marreta, cego, ergue ainda o peito forte.

Maldito domingo, todas as clínicas fechadas. Tento uma e outra, nada. Meia hora passou, decido sufocá-lo, cortar o sofrimento. Mas como, com o que? No tanque cheio  d'água? Um travesseiro na cabeça? Fecho nas mãos o pescoço grosso e musculoso. Arre, uma clínica de plantão atende.

Ao buzinar o táxi, abraço numa toalha o velho amigo. Ainda se debate, a cabeça caída, babando. O chofer desconfiado, se não é raiva. Em poucos minutos chegamos, deposito-o na medonha mesa de zinco, dois cintos de couro pendentes. Diz o veterinário: caso neurológico, irreversível, só resta... De longe, em voz baixa, última vez: "Tiau Topinho". Mão firme, assino o papel da eutanásia. Pago a injeção e o resto. Puxa, sou um durão.

Volto a pé, abro o portão. Ali não está para me receber, como fez todo dia em 13 anos: o sol que move a lua, os planetas — e o seu rabinho. Na sala grito o seu nome e bato palmas, lá vem ele com tudo. Três a quatro voltas ao longo das cadeiras, finjo acertá-lo cada vez que passa, ao errar o toque um ganido de alegria. Em seguida entra na cozinha — muita correria dá sede — estala ruidoso a língua na água. Agora tosse, engasgado. Não é que o tipinho nunca bebeu sem tossir? Desta vez, única vez, ele não me acolhe.

No alto da escada, mal abro a porta, três bolinhas negras: dois olhos e um focinho. Mais o rabinho frenético, limpador louco de pára-brisa. Largo o pacote no primeiro degrau e me atiro para abraçá-lo. Senão, ai de você: bruto escândalo, gemido e choro. Esperar não pode, a festa de cada encontro. Em tantos anos nunca o vi sem lhe fazer um agrado. Ele nunca me viu que não ganisse de amor.

Passo pela cozinha, no canto a sua cama vazia. Nem o pobre cobertor cinza — todos os bens de toda uma vidinha. No jardim, à sombra dos cedros, eis o vôo rasante de um sabiá — é ele, no seu encalço. Não, desta vez. Na porta da cabana, quem está deitado? Nada, é o velho tênis arejando. Pego um livro, tento me concentrar. Ele arranha e cheira na porta, o convinte para uma volta no jardim. Abro, é apenas uma formiguinha na soleira.

De novo em casa, hora do lanche. Troco a água da tijela, à toa. Suspendo meio braço para o pacote de ração. Um tiquinho de torrada cai no soalho, apanhar ele não vem. Cabeça baixa, bebo devagarinho o chá.

Uma semana faz. Ainda me segue pelo jardim. Para ele sou a ração, a água, o cobertor no frio — e a mão, sim, que lhe coça a nuca. Jamais o vi sem me pôr de joelho. Nunca ele me viu sem sacudir o rabinho.

De volta, à minha espera, não está. Abro a porta, no alto da escada, onde as três bolinhas negras? Entro na sala, bato palmas, grito o seu nome, nada. Estalo as mãos nas coxas, agore ele vem, derubando tudo na passagem. Ainda não. Na cozinha espio o seu canto, debaixo do balcão: que fim levou a caminha?

Falo com ele, não é o que faço, quantas vezes por dia, há que de anos? Vou apanhar a tigela e mudar a água, onde a tigela? Ergo o braço para servir a ração, disfarço com a lata de bolacha. Sentado à mesa, vigio o cara, não me desgruda o olhinho preto com a sua janela de luz. Aonde eu fosse, lá vinha o meu rabinho atrás.

Lendo no sofá, de repente uma patinha roçava o joelho, distraído lhe aperto a orelha: ai, muita força. Noite de insonia, podia contar com ele, ao lado do tapete, alerta a cada gesto.



Publicado na Gazeta do Povo em 26/12/1993
 

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